terça-feira, 8 de setembro de 2009

Máscaras

“Ah! Segunda... Vai começar tudo novamente!” – Pensou Ariela ao acordar. Sentia tanto sono, estava tão cansada... Cansada como nunca havia estado antes.
Levantou-se, tomou seu banho, vestiu-se e saiu. Pegou os mesmos ônibus, com as mesmas pessoas dos últimos três anos. Cumpriu sua rotina. Desempenhou seu papel. Retornou a seu esconderijo. Retirou sua máscara. Despiu-se de sua caracterização e, pela primeira vez em seu dia, respirou.
Após um banho morno, sentou-se em sua poltrona favorita e, aninhada como estava, abriu seu livro favorito. Favorito naquele momento, pois como tudo no mundo, Ariela era, também, um ser mutável. Constantes mutações operavam-se nela. Eram muito mais complexas do que apenas culpa dos “hormônios da idade”.
Seu livro do momento, ou melhor, seu autor do momento era Machado de Assis. Sentia uma ambivalência de sentimentos, ora rejeitava, ora aceitava. Sentia-se ferida quando se deparava com certas palavras, contudo, mais impelida a continuar, estava mais dolorosamente fascinada.
Seu fascínio era pelo perfil humano. Talvez encontrasse algumas respostas, ou pistas que fossem... Algo para aplacar seus questionamentos, afinal - “Um autor que com tanta destreza e fina ironia expões os mecanismos mais internos do ser humano, deve me ajudar a ver com mais clareza” – pensava Ariela.
Mais Clareza! ... Era tudo que precisava e o que não conseguia. Sentia-se cada vez mais imersa nas sombras mudas do labirinto de seu próprio EU. Tudo acontecia tão rápido, um turbilhão que ela era incapaz de assimilar. Sentia-se presa dentro de seu labirinto, oscilando entre esconder-se de seu Minotauro e buscar seu Telêmaco. Mas, essa era apenas uma parte de sua inquietação. Da outra parte, Ariela se apercebia aos poucos. A cada dia de vida passada, a cada minuto mais velha, ela percebia com fina intuição que em algum momento de seu passado recente havia sido tragada pelo “vortex” da vida contemporânea.
Tornava-se, imperceptivelmente, co-adjuvante de sua própria comédia pessoal, ou seria de sua própria tragédia pessoal? ... Não saberia responder, talvez fosse apenas mais uma atriz no espetáculo tragicômico da vida.
Não conseguia precisar nenhuma tese. Não encontrava respostas, ou pistas que fossem. Estava cansada... Cansada como nunca havia estado antes. Talvez encenar seu papel, fosse mais exaustivo do que supunha. Talvez conhecer-se não fosse a tarefa mais simples.
Cessou o pensar. Foi deitar-se. Talvez as respostas lhe aparecessem em sonhos, como uma inspiração de sua musa-madrinha, que a muito tempo não a visitava.

Diving....

Diving into a character’s mind to explain...” – Ariela não escutou mais nada. A palavra diving tragou-lhe para dentro das águas escuras e, até então, plácidas de seu EU.
Mergulhou, abandonou-se, deixou-se amortecer. Abstraiu no vislumbre de seu próprio ser. Não a imagem que todos podiam ver, ou, talvez, quisessem ver, mas seu EU mais íntimo, seus recônditos mais oblíquos. Nada era preciso ou claro e, sim, tons de cinza formando telas impressionistas de sua vida.
“Porque?” – essa era única coisa que ecoava em seus pensamentos. Sua curiosidade a levava a diferentes situações, ora boas, ora ruins, mas misteriosamente fascinantes. Nunca encontrava respostar definitivas, contudo suas charadas internas se multiplicavam a cada novo pensamento.
“Cada vez mais complicado, será assim mesmo?” – questionava-se Ariela com considerável freqüência. Debatia-se por não saber se os demais também viviam espetáculos de gladiadores comsigo mesmos.
“Cansei!... Quero apenas viver de modo tranquilo!Mas porque.... Ah!de novo não!” – Ariela não conseguia evitar, era mais poderoso que ela. Por mais que relutasse, não demorava muito para que retornasse ao ciclo alucinante se pensamentos que imergiam de seu ser.
Tudo acontecia de modo tão rápido. Movia-se de questionamento a questionamento em questão de segundos. Pouco se fixava em sua mente, contudo muito enraizava-se em sua essência.
“Talvez tudo seja frívolo. Talvez o mais importante e vital seja simplesmente indefinível. Palavras não descrevem. Talvez caiba a nós apenas nos permitir penetrar no reino surdo das palavras, caminhar por seus labirintos móveis e apreender apenas o sentido.” - A sensibilidade de Ariela aflorava-se a cada segundo em seu coração.
“Ariela, acorda...a aula já terminou! Vamos, para de ficar ai sonhando acordada! ” – era a voz de um colega, que para Ariela era mais a voz da dura realidade materialista de sua vida concreta. Hora de sair de seu torpor, vestir sua máscara e representar seu papel!

O início ...

Ariela rendeu-se aos pedidos de seus amigos e decidiu ir à festa. De acordo com todos os comentários nos corredores de sua instituição, seria a melhor festa do ano. O que Ariela não sabia, ou desconfiava, é que este seria um momento divisor de águas em sua existência. Chegou à festa, uma linda tenda armada em meio ao gramado, muitas luzes piscantes, muita gente rindo, música alta.
Temos depois, Ariela encontrava-se parada ao canto de uma “barraca” de cachorro-quente. Não agüentava mais comer seu cachorro-quente. Não havia comido nem a metade. Pela metade também estava seu copo de refrigerante. “Meio vazio, ou meio cheio?” – Perguntava-se Ariela. Sua perspectiva das coisas parecia em suspensão, assim como seus sentidos, seus movimentos, agora já tão letárgicos.
A música alta, as risadas, as conversas, as luzes... Tudo parecia tão devagar, tão longe, embora ao alcance de suas mãos. Queria sentar-se, mas talvez fosse melhor não, talvez se entregasse de vez ao torpor que lhe adormecia os sentidos e desacelerava a agilidade de pensamentos, sua razão.
Continuou comendo. Não sabe por quanto tempo permaneceu ali, mas tivera a impressão de que durara eras e que as conversas não passaram de frases soltas ao acaso. Engoliu o ultimo pedaço de seu cachorro-quente e verteu a ultima gota de seu refrigerante. “Porque demora tanto para fazer efeito?” – pensou Ariela. Aquela sensação desconhecida que o torpor de seus sentidos lhe trazia era desconfortável. Sentia-se como se sua alma vestisse o corpo errado, como se fosse outra pessoa naquele momento. Talvez fosse outra pessoa.
Talvez fosse uma face sua que nunca antes havia percebido. Talvez fosse aquele EU que por anos permaneceu escondido nas sombras laterais de seu espelho, apenas aguardando o momento de ser visto. Se por a vista e ser visto e, não, sublimado como algo que seus olhos pensaram não ver, ou que decidiram acreditar ser apenas uma sombra sem vida.
Tal pensamento a assustou. Chegou a gelar-lhe um pouco o sangue, que até pouco tempo fervia-lhe nas veias. “Seríamos nós uma combinação de vários EUS?”- Ariela não sabia segurar ao certo, mas começava a desconfiar que, talvez, as imagens que vemos não fossem da maneira que as compreendemos, ou, no mínimo, não apenas desta ou daquela forma; talvez fossem mais profundas, ambivalentes, intensas, sombrias e menos explicitas.
Este ultimo pensamento gelou-lhe de vez o sangue, despertou-lhe os sentidos. Sentiu-o como um balde de água fria caindo-lhe sobre o corpo. Acordou de seu torpor. Com a respiração ofegante, como se tivesse acabado de correr por horas e milhas, sentiu-se só. Sentiu-se como se lhe tivessem retirado a essência, como se estivesse oca. O que não sabia, pelo menos não naquele momento, é que se sentira daquela forma porque acabara de encontrar a ponta do novelo que a conduziria através do labirinto de si mesma. Até aquele momento esteve presa à entrada deste labirinto, desconhecendo poder, ou desejando não poder, se aprofundar.
Agora era tarde. Já havia embarcado neste trem, a vapor é verdade, mas um trem que lhe levaria a lugares de si mesma que não esperaria encontrar, ou ter que encontrar.